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Um mundo inclusivo está em construção

mar 1, 2019

Bernardo entre os pais, Marina e Fernando: com quase sete anos de idade, o menino alegra e orgulha a família com suas conquistas pessoais

Nas últimas décadas, as pessoas com síndrome de Down saíram da reclusão e, cada vez mais, estarão em todos os espaços sociais

No quarto compartilhado com o irmão mais novo, em um apartamento na zona do sul do Rio de Janeiro, Bernardo vai pegando um a um os seus bonecos e os entregando ao pai. Há um Visconde de Sabugosa, miniaturas de animais selvagens e de fazenda, personagens em tamanho pequeno da série Star Wars, compridas cobras feitas de cilindros de madeira, representações em pano de figuras humanas. Todos são convidados da festa do papai, brincadeira criada pelo menino e que se tornou uma de suas diversões preferidas.

Sentado no chão, junto à parede, Fernando Paiva, o pai, saúda cada um dos convidados. “Ele traz o boneco, eu falo: ‘Oi, fulano!’. E ele responde: ‘Oi, papai! Eu vim para a sua festa!’”, descreve Fernando. O pai, então, vai acomodando os convidados a seu lado. “Tem de ser sentado, não pode ser deitado, de qualquer jeito. Sentadinho, bonitinho, do jeito que ele imagina.”

Com o tempo, a festa do papai ganhou atrações. “Comecei a inventar as brincadeiras da festa”, conta Fernando. “Quando os convidados chegam, às vezes perguntam: ‘Vai ter pula-pula? Vai ter teatro, piscina de bola?’. Há vezes em que a gente faz as brincadeiras também. Pegamos uma maletinha que ele tem e fingimos que é o pula-pula. E os convidados fazem uma fila de dois em dois, têm de respeitar a fila, que achei que era uma coisa legal de ele compreender”, diz o pai. “Tudo improvisado. Foi uma brincadeira que nasceu do nada e virou oficial do Bê.”

Um dia, Bernardo propôs uma variação, a festa do Bê. “A gente inverte os papéis, ele senta colado na parede e eu trago os convidados”, explica Fernando. Quando o pai, que é jornalista e trabalha em casa, está com tempo, a diversão pode se estender. E nesses momentos é que vão surgindo os improvisos e as novas situações.

Outro jogo com que Bernardo tem se entretido é adivinhação. A pergunta de que mais gosta é “o que cai em pé e corre deitado?”. “Sempre tem que ter essa e ele responde feliz da vida: ‘Chuva!’”, diverte-se o pai, que então responde de volta para o filho: “Boa, Bê! Toca aqui!”. Fernando tem utilizado essa brincadeira para treinar a capacidade cognitiva de Bernardo, descrevendo algo para verificar como está a aquisição de vocabulário. “Acho que é um bom exercício cognitivo para ele. E ele acerta tudo, o que prova que está entendendo o que a gente está falando.”

O menino também gosta muito de brincar de faz de conta com os bonecos. “Ele brinca sozinho muitas vezes, inventando os mundos dele. Reproduzindo conversas nossas, um boneco conversando com o outro. Às vezes, o vejo falando com os bonecos”. E adora livros. Bernardo ainda não está alfabetizado, mas já identifica as letras e reconhece o próprio nome. “Na hora de dormir, ele nos pede para ler. Já é um ritual e toda noite é a mesma discussão, porque ele quer trazer milhares de livros e não consegue nem carregar”, ri Fernando. “Ele gosta de pegar o livro e folhear. Aqui e na escola ele faz muito isso.”

Apaixonado por livros: Bernardo, que está na educação infantil, já reconhece as letras e o próprio nome

Apaixonado por livros: Bernardo, que está na educação infantil, já reconhece as letras e o próprio nome

NOTÍCIA NO PARTO
Bernardo, que em maio completa sete anos de idade e nasceu com síndrome de Down, concluirá este ano a educação infantil na mesma escola onde o irmão, Francisco, também estuda. Fernando e a esposa, Marina Vargas, souberam no parto que o filho mais velho havia nascido com a síndrome. “Foi uma surpresa, a gente não esperava. Eu não sabia muito sobre as especificidades da síndrome, então eu acho que ficamos um pouco assustados”, recorda-se Marina, que havia feito o exame de translucência nucal durante o pré-natal.

A translucência nucal é um exame de rotina feito no primeiro trimestre da gravidez e que serve para estimar o tempo de gestação e a chance de a criança nascer com alguma síndrome. “A translucência do Bernardo deu muito perto do limite, mas dentro do que seria considerado um parâmetro normal. Ele era um feto com desenvolvimento normal, então ficamos tranquilos”, conta a mãe.

A síndrome de Down, que recebeu esse nome por ter sido descrita em 1866 pelo médico britânico John Langdon Down, não é uma doença, mas uma alteração cromossômica ocorrida desde que o bebê começa a se formar. Nessa síndrome, há um acréscimo no número total dos cromossomos, pois ocorre uma trissomia (ou seja, a presença de três cromossomos) naquele que seria o par 21. “Quando falamos em síndrome, estamos nos referindo a uma pessoa que apresenta um conjunto de sinais e sintomas que tem uma causa única. Neste caso, é a trissomia do cromossomo 21, o que, além do comprometimento intelectual, pode apresentar várias outras malformações, como faciais, cardíacas, renais e gastrointestinais, dentre outras”, explica o médico geneticista Rui Pilotto, que é coordenador científico da Federação Nacional das Apaes e já foi associado ao Rotary Club de Curitiba-Parque Barigui.

A alteração cromossômica relacionada à síndrome de Down é a de ocorrência mais comum, com incidência que varia de um a cada 600 a um a cada mil recém-nascidos. “Em relação ao Brasil, na falta de dados oficiais, algo que diferentes associações buscam há anos, estima-se que a população com síndrome de Down esteja perto de 300 mil pessoas. Em nível internacional, é estimado que existam 9,8 milhões de pessoas com a síndrome”, informa o geneticista.

BUSCA POR INFORMAÇÃO
Nos dias que se seguiram ao nascimento de Bernardo, a primeira atitude de Fernando e Marina foi mergulhar na leitura de conteúdo sobre a síndrome de Down. “Quando é uma coisa desconhecida, você quer saber o que vai acontecer, o que tem de fazer, o que significa. A gente sabia praticamente nada, então começou a pesquisar”, conta Marina. No entanto, a pesquisa inicial não desfez o susto dos pais. As informações que eles encontravam, embora relevantes, eram científicas demais. “Nessa hora precisa ser um conteúdo mais direcionado. São coisas de que você precisa saber porque tem de tomar atitudes práticas”, esclarece a mãe.

As atitudes práticas a que Marina se refere incluem alguns procedimentos específicos que precisam ser adotados quando uma criança nasce com síndrome de Down. “Hoje, todas as crianças que, ao nascerem, apresentem sinais dismórficos da síndrome de Down, seguem um protocolo em que estão elencadas as avaliações necessárias e a respectiva época. Por exemplo, no primeiro mês é importante fazer uma avaliação cardíaca, uma vez que 50% desses recém-nascidos podem apresentar um defeito cardíaco. Se isso ocorrer, já pode ser corrigido cirurgicamente, o que faz com que haja aumento da longevidade”, explica o médico. Há também o cariótipo, um estudo cromossômico que serve para confirmar a hipótese de síndrome de Down. Tão logo tenham o resultado, os pais devem iniciar o procedimento de estimulação precoce do bebê, o que fará toda a diferença no desenvolvimento motor e cognitivo.

“A criança com síndrome de Down vai atingir os mesmos marcos que uma criança que não tem a síndrome, só que em um tempo diferente e com estímulo extra. De modo geral, é o que acontece. Com dois meses, o Bernardo foi para o fonoaudiólogo”, conta Marina, que de início ficou surpresa com essa necessidade. No caso de bebês com síndrome de Down, o objetivo do acompanhamento fonoaudiológico é, por exemplo, auxiliar no correto desenvolvimento orofacial, possibilitando a amamentação.

RELATIVIZAR
Logo em seguida, Bernardo começou a fazer fisioterapia. Como a hipotonia (ou flacidez muscular) está presente em pessoas com síndrome de Down em graus variados, o trabalho do fisioterapeuta é ajudar a criança a atingir os marcos físicos com mais rapidez. “Rolar, depois ficar com o torso ereto e o peso nos braços, sustentar a cabeça”, descreve Marina, que hoje já relativiza algumas daquelas informações dos primeiros dias de pesquisa. “A incidência é maior na síndrome, mas também existem crianças sem a síndrome que têm hipotonia. Elas fazem o mesmo estímulo que o Bernardo fez”, comenta.

Além disso, Marina diz haver alguns mitos que precisam ser derrubados. Um deles é a ideia de que bebês com síndrome de Down precisam ser amamentados na mamadeira. “Alguns precisam, embora isso também não seja uma questão da síndrome”, explica. Outro é a visão generalizada de que pessoas com síndrome de Down têm, necessariamente, um comportamento amoroso. “O Bernardo é super mal-humorado. Às vezes, faz pirraça, é super genioso”, revela a mãe. “A mesma pessoa pode ser várias coisas ao mesmo tempo, como qualquer indivíduo”, completa o pai.

Na experiência de Marina, algo que ajudou muito após o nascimento do filho foi a chance de conversar com uma colega de trabalho na editora onde era tradutora. Essa colega é mãe de uma jovem com síndrome de Down. “Nada
substitui essa troca entre duas pessoas que estão vivenciando a mesma coisa. Foi maravilhoso falar com uma pessoa que já tinha vivido o que eu tinha vivido”, recorda-se.

Família completa: a interação com o irmão Francisco tem ajudado no desenvolvimento de Bernardo

Família completa: a interação com o irmão Francisco tem ajudado no desenvolvimento de Bernardo

ACOLHIMENTO
Foi então que Marina teve a ideia de iniciar o projeto AcolheDown, dedicado a proporcionar a outras pessoas uma rede para troca de informações e experiências. “Eu tive muita sorte, porque existia essa pessoa que se dispôs a conversar comigo e foi maravilhosa, mas nem todo mundo conhece alguém”, ela diz. “Eu sinto falta de ter tido na minha infância um contato mais próximo com pessoas com síndrome de Down ou com outras deficiências. Claro que a minha surpresa continuaria existindo, mas acho que o choque teria sido um pouco menor, se eu tivesse tido mais contato, e com naturalidade, com pessoas com deficiência”, avalia Fernando. “Acho que é isso, você encarar da maneira mais natural possível, porque é vida que segue”, afirma Marina.

Como a vida de Bernardo está seguindo, dinâmica e repleta de atividades sociais. Ele continua com as sessões de fonoaudiologia e fisioterapia. Por sugestão da avó materna, está fazendo musicoterapia. Por escolha própria, estava no futebol no último semestre, mas pediu para neste trocar por teatro. “O Chico entrou no futebol só porque viu o Bê, mas se cansou e trocou por teatro. Acho que o Bê foi influenciado porque o irmão fazia teatro, e o Chico agora botou na cabeça que quer artes plásticas. A gente estimula e disponibiliza tudo o que pode”, conta Fernando. Aos sábados, ainda vão para a natação.

Os dois meninos brincam juntos menos do que os pais gostariam, mas Fernando não tem dúvida de que a interação entre eles é positiva para Bernardo. “Tenho certeza de que muita coisa que o Bernardo é hoje, que ele aprendeu e faz foi com a ajuda do irmão. Foi de observar o irmão, ou a gente com o em volta dele e o curtem do jeito que ele é”, comemora o pai, que guarda no celular fotos da festa registrando essa afinidade.

E começaram a surgir convites para Bernardo brincar na casa dos amiguinhos. “Acho que é uma conquista do Bernardo, claro, porque ele conseguiu estabelecer os vínculos de amizade, mas é também uma conquista dessas pessoas, que não necessariamente conviviam com indivíduos com síndrome de Down, de não olharem para ele como coitadinho, mas como uma criança como outra qualquer”, analisa Marina.

NO PASSADO
De fato, não foi sempre assim. Em um passado não tão longínquo, pessoas com síndrome de Down raramente eram vistas nos espaços públicos. Como frequentar a escola não era uma possibilidade, ficavam privadas do direito de desenvolver suas capacidades. No Brasil, esse contexto começou a ser alterado em 11 de dezembro de 1954, com a fundação da primeira Apae, no Rio de Janeiro, por iniciativa da norte-americana Beatrice Bemis. Integrante do corpo diplomático daquele país e mãe de uma jovem com síndrome de Down, ela já havia participado da fundação de mais de 250 associações de pais e amigos em seu país de origem. Admirada por não existirem instituições semelhantes no Brasil, e enfrentando a recusa das escolas no Rio, ela motivou um grupo de pais, amigos, professores e médicos a fundarem a primeira Apae do país, com a colaboração da Sociedade Pestalozzi do Brasil, que ofereceu parte de um prédio para a instalação de uma escola.

“A Rede Apae Brasil está presente em todos os Estados da federação, atuando hoje em 2.200 municípios”, conta o presidente da Federação Nacional das Apaes, José Turozi, associado ao Rotary Club de Campo Mourão-Gralha Azul. Por sinal, em diversos municípios, Rotary Clubs são parceiros frequentes das Apaes. Segundo o rotariano, esse trabalho tem sido de fundamental importância para a sustentabilidade e o apoio a projetos sociais. “Desde a construção, reforma e ampliação das sedes das entidades, bem como a compra de equipamentos e veículos. O trabalho realizado em conjunto pelo Rotary, Apaes e Fundação Rotária fez com que milhares de entidades fossem beneficiadas”, garante Turozi, que lança um pedido: “Os companheiros rotarianos que ainda não visitaram ou não conhecem a Apae do seu município, façam uma visita e, se possível, envolvam-se nos trabalhos voluntários e tornem-se um associado, para ajudar na gestão da entidade”.

MUDANÇAS
Desde que aquela primeira Apae entrou em atividade no Brasil, o país viu a sociedade amadurecer e modificar a maneira como olha para as pessoas com deficiência. Turozi atribui essa mudança de pensamento a uma evolução global. “Consequentemente, a sociedade geral, em sua forma de viver, agir e pensar, necessita acompanhar. Inclusão social, autonomia, resiliência e protagonismo são palavras-chave do discurso na atualidade e todos nós precisamos adotá-las e aprimorar os serviços, planejamentos e projetos para tais ideologias. É o que poderá garantir a efetivação dos direitos humanos”, defende o rotariano.

A exemplo do que ocorreu com a sociedade, Turozi diz que o trabalho realizado pelas Apaes também tem passado por mudanças ao longo das décadas. Segundo ele, a cada ano elas têm se adequado às demandas sociais e da população atendida e às exigências das políticas públicas. “As mudanças incidem na gestão administrativa dos serviços, envolvendo os atendimentos, a linguagem adotada, a visão relacionada ao público atendido, com a eliminação de concepções superadas do passado, quando predominavam a benesse e a caridade”, explica.

Uma das que têm se destacado nesse sentido é a Apae de São Paulo. Em 2010, fechou espontaneamente sua escola e passou a atuar com o modelo de educação inclusiva. Além disso, possui uma campanha para alertar a população para a importância de crianças e jovens com deficiência intelectual terem acesso à escola regular e ao ensino de qualidade. Idealizada pelo Núcleo de Políticas Públicas e Advocacy da Apae de São Paulo, a campanha divulga a existência de um canal de denúncias para situações de violação dos direitos das pessoas com deficiência intelectual no ambiente escolar. As denúncias feitas na capital paulista pelo telefone 11 3913-4015 serão encaminhadas à Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo.

Seguindo o modelo da educação inclusiva: em 2010, a Apae de São Paulo fechou sua escola especial

Seguindo o modelo da educação inclusiva: em 2010, a Apae de São Paulo fechou sua escola especial // Crédito: Divulgação Apae São Paulo

GARANTIDO POR LEI
Instituída pelo governo federal em julho de 2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência garante o direito de todos os alunos com qualquer tipo de deficiência frequentarem a escola regular. Ou seja, promove a educação inclusiva. Antes da existência dela, o Brasil já havia assinado, em março de 2007, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela ONU em 13 de dezembro de 2006. Esse documento tem status jurídico de emenda constitucional.

Apesar de tudo isso, não é exatamente raro que famílias encontrem entraves no momento de matricular crianças com deficiência. “Hoje em dia, esses obstáculos estão mais camuflados. Até porque as escolas sabem que por lei não podem negar a matrícula”, comenta Bianca Ramos. Arquiteta e urbanista de formação, ela trabalha há mais de 13 anos como gestora de projetos de cultura e educação e é uma das fundadoras do Movimento Down, criado em 2012 como um portal de informação e comunicação para produzir e difundir conteúdo organizado e de qualidade sobre síndrome de Down, como forma de apoiar as famílias.

No que se refere especificamente ao direito à educação inclusiva, o Movimento Down criou a campanha Escola para Todos. “É uma campanha que mobiliza a Ordem dos Advogados do Brasil, Defensorias Públicas e o Ministério Público para apoiar as famílias e também orientar operadores de direito que acabam sendo chamados nesses casos”, explica Bianca, que tem uma irmã de 17 anos com síndrome de Down, desde sempre aluna de escola regular. Ela diz que a importância disso é a criança com deficiência estar em um ambiente que reflete a sociedade, convivendo com todos os tipos de criança, o que é positivo também para os outros alunos. Dessa forma, todos têm a chance de aprender a viver de maneira igualitária. “O que defendemos é a inclusão social sem restrição em todos os espaços da sociedade, em especial na escola, que é o segundo espaço social mais importante na vida de qualquer pessoa, depois da família”, declara Bianca. “Se a sociedade é inclusiva, todos os seus espaços têm de ser.”

NOVO DEBATE
O debate sobre educação inclusiva avança e hoje está em pauta também a permanência qualificada do estudante na escola. Na prática, isso significa saber quais são as medidas que a equipe escolar e a família precisam adotar para que o aluno se beneficie do que a escola regular tem a oferecer. “Nenhuma criança vai para a escola só para ser incluída socialmente. Crianças vão para a escola, sim, para serem incluídas socialmente, mas também para aprender e desenvolver seu potencial”, afirma Bianca.

Para chegar a isso, é essencial ter em mente a seguinte diretriz, inaugurada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e trazida para a normativa nacional pela Lei Brasileira de Inclusão: a questão da deficiência não está na pessoa com deficiência, mas nas barreiras que a sociedade, de um modo geral, impõe a ela, na medida em que a enxerga com preconceito. “Quando você coloca uma criança com deficiência na escola, que barreiras são essas que já existem lá?”, questiona Bianca. “Se observarmos os índices brasileiros, veremos que já existem barreiras de aprendizagem que atravessam estudantes, em tese, considerados típicos, pois mais de 40% dos alunos terminam o ensino fundamental com deficiências de aprendizagem”, afirma.

Para Bianca, o recado do aluno com deficiência para a escola baseada em um modelo de normalidade é que ela não funciona. A solução seria um modelo de escola que inclua a suplementação pedagógica. Em outras palavras, além de estar na sala de aula regular, fora dela o aluno com deficiência recebe de um professor especializado, que trabalha em parceria com o outro professor, os apoios necessários para se desenvolver. Segundo Bianca, foi esse modelo que a Apae de São Paulo passou a adotar, encerrando sua escola especial e oferecendo suplementação pedagógica a alunos matriculados em escolas regulares.

PARTICIPAÇÃO DE TODOS
É também no que acredita Rosane Lowenthal, professora do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e consultora da Escola de Gente, fundada em 2002 pela jornalista e escritora Claudia Werneck e que se tornou referência em direitos humanos, acessibilidade e inclusão. “Quando falamos em inclusão, estamos falando da possibilidade de participação das pessoas com deficiência em todos os âmbitos da sociedade, sendo que há também a parte da sociedade em garantir a acessibilidade e participação dessas pessoas”, explica Rosane, ressaltando que se trata de uma via de mão dupla. “Não estamos falando de as pessoas com deficiência terem de ultrapassar certas barreiras, mas que a sociedade tem o seu papel em fazer com que essas barreiras sejam minimizadas para garantir a participação das pessoas. Se tivermos um lugar específico para elas, não estamos falando de inclusão”, completa.

Rosane, que é coordenadora da Unidade de Referência em Transtornos do Espectro Autista do Estado de São Paulo e também pesquisa a questão do estigma em todas as deficiências, critica o pensamento segundo o qual a inclusão precisa ser garantida pelo fato de se tratarem de pessoas diferentes. “Acho que o pensamento que realmente rege a inclusão é que nós não somos um grupo e as pessoas com deficiência são outro. Nós todos somos diferentes uns dos outros e, por mais que a gente ache que isso é muito banal, muda totalmente a forma como olhamos e agimos em relação a isso”, acredita a pesquisadora.

Com isso, ela não está negando as dificuldades particulares de cada um. Rosane cita um exemplo do filho com síndrome de Down, que hoje tem 25 anos, faz faculdade de educação física, trabalha na área e sempre estudou em
escola regular: “A grande maioria das pessoas com síndrome de Down tem dificuldade para entender abstrações mais difíceis. No ensino médio, você tem uma vasta literatura mais tradicional. Na época do meu filho, a escola selecionou livros que estavam dentro do escopo que ela queria, mas que tinham, por exemplo, versão em história em quadrinhos”. Essa escolha incluiu o menino na discussão feita em sala de aula. “Talvez de alguma forma mais rasa, isso a gente não sabe, mas dava-lhe a oportunidade de participar daquele momento da forma como ele conseguiu. Inclusão é exatamente isso”, afirma.

CONVIVÊNCIA
O dia a dia profissional, lidando com casos bem mais graves do que os de síndrome de Down, não abalou uma certeza de Rosane: “Não acredito em escola especial nem para casos gravíssimos. Temos de entender que escola é lugar de aprendizagem e aprendizagem é social. Se não tenho um modelo diferente, não consigo ter aprendizagem e evolução”, justifica. “Acho que os maiores exemplos que a gente tem vêm de uma geração que já conviveu com pessoas com deficiência e que hoje, começando a ser uma liderança jovem no país, com certeza pensa de forma diferente, porque teve a convivência”, afirma Rosane.

Na opinião dela, a experiência da convivência é transformadora porque traz uma visão renovada das possibilidades. Em se tratando de inclusão, é essencial. “A garantia de inclusão é acreditar de verdade na pessoa que está à sua frente”, ensina a pesquisadora. Rosane diz que sim, chegará o momento em que a criança se perceberá diferente, mas a família deve esperar o questionamento surgir do próprio indivíduo.

Com quase sete anos de idade, não há nada que Bernardo não se ache capaz de fazer. “Ele se sente bastante independente. Outro dia, botou a mochila, passou no meu escritório e deu tchau. Disse que ia para a casa da amiga. Passou pela mãe e falou: ‘Juízo, hein!’”, diverte-se Fernando. Mas ele também se preocupa com o dia em que o filho se dará conta de que tem limitações. “O que vai se passar na cabeça dele? É uma coisa que eu penso desde o começo.”

Breno Viola e Samantha Quadrado: o casal se conheceu na festa de lançamento do filme Colegas, em que ele é um dos protagonistas, e hoje está noivo

Breno Viola e Samantha Quadrado: o casal se conheceu na festa de lançamento do filme Colegas, em que ele é um dos protagonistas, e hoje está noivo

INSPIRAÇÕES
Quando esse dia chegar, Fernando e Marina terão a possibilidade de inspirar o filho com as histórias de um bom número de pessoas com síndrome de Down que, apoiadas pela família, alcançaram autonomia e perseguiram seus sonhos. O judoca Breno Viola, por exemplo, de 38 anos e que desde os três se dedica ao esporte. “Vi meu irmão e meu pai praticando judô, a minha irmã também, e quis seguir o exemplo”, conta o atleta, que experimentou outros esportes. “Jiujítsu, natação, capoeira”, enumera. “Cada esporte que fui vendo, fui fazendo. E velejava!” A identificação maior foi com o judô. “Porque ajuda a ficar mais cansado para poder dormir logo”, explica.

Breno construiu uma bem-sucedida carreira no esporte. Em 2002, se tornou o primeiro judoca com síndrome de Down a conquistar a faixa preta nas Américas. Bicampeão mundial em sua categoria, garantiu a medalha de ouro em 2006 no torneio Judô para Todos, na Itália, ficou em quarto lugar nos Jogos Olímpicos Especiais, em 2011 na Grécia, e em 2013 foi bronze na etapa italiana do Judô para Todos. Atleta do Flamengo, todos os dias sai sozinho de casa, na zona norte do Rio, para treinar. “Sou o primeiro a chegar e o último a ir embora”, revela. Ele faz preparação física e iniciou aulas de inglês. “O apoio da família é fundamental. Hoje, eu agradeço o que sou, por ter essa autonomia de ir e vir, fazer tudo sozinho, porque a minha mãe me ensinou”, emociona-se ao contar.

O desejo de ter autonomia, diz, partiu primeiro dele. “Com 15 anos pedi para andar sozinho.” Recebeu o apoio da mãe, que gosta de torcer por ele nas competições. “Xodó, faz isso! Xodó, faz aquilo!”, Breno imita, afinando a voz e se divertindo. Se a torcida funciona? “Às vezes, é bom, às vezes, não é. Quando a gente está focado para encarar o adversário e deixá-lo com medo, ouvir a voz da plateia, às vezes, desconcentra.” Deixar os tatames, por enquanto, não passa pela cabeça. “Sei que um dia vou ter que parar, mas só vou fazer isso quando minhas pernas não aguentarem mais. Ainda quero deixar corpos no chão”, faz graça.

ESTREIA NO CINEMA
Breno gosta de cinema. E é apaixonado por lutas. Fica fácil imaginar o seu gênero favorito: “Ação”, a resposta vem de imediato. Mais rápido ainda, conta qual é seu filme preferido: “Colegas”. Não é uma história de ação, é o filme que ele protagoniza com outros dois atores com síndrome de Down.

“Foi inspirado em uma relação que tive com o meu tio, porque ele passava grande parte das férias com a gente. Nunca vi a síndrome de Down de uma forma negativa”, conta o roteirista e diretor Marcelo Galvão. Seu tio Marcio, mesmo nome do personagem de Breno, morreu em 2011. Tendo convivido de forma próxima com ele, Marcelo pôde notar mudanças na forma como a sociedade olha para a síndrome de Down. “Mudou bastante, pra mim também. Meu tio tinha um atraso muito grande, acho que principalmente pela forma como a sociedade enxergava antes. Com o tempo aprendi muito o quanto eles são capazes e têm se tornado independentes”, comenta o diretor, que está filmando há sete anos um documentário sobre as mães dos atores de Colegas. “Venho acompanhando a vida delas e a vida deles e o quanto elas se dedicaram para que eles se tornassem pessoas independentes e felizes. Eu os vejo muito mais capazes e com um futuro muito mais promissor do que antigamente. E acho que a sociedade também.”

Marcelo acredita que o longa contribuiu para diminuir o preconceito. Lançado em 2013, Colegas foi ovacionado no 40º Festival de Gramado, onde conquistou o Kikito de melhor filme, entre outros prêmios nesse e em mais festivais. Tirar o projeto do papel foi tarefa árdua. Marcelo passou anos captando recursos. A bem-sucedida campanha do filme, após o lançamento, não facilitou o caminho para Colegas 2. “Estou captando recursos para fazer a continuação, com mais garotos, e está muito difícil”, lamenta. Deparando-se novamente com tanta resistência, ele diz que a causa o motiva a continuar. “Dentro do processo, durante esses anos, conheci tantos jovens com síndrome de Down tão interessantes, tão bons atores, então quero mostrar mais.”

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PROJEÇÃO
O cineasta fica feliz por Colegas ter aumentado a projeção dos atores. Breno, por exemplo, foi convidado para levar a tocha olímpica e atuou em musical no teatro. Entretanto, a conquista que mais emociona o judoca e ator não está nos tatames, na tela de cinema nem nos palcos. “Essa menina”, ele diz, apontando para a noiva, Samantha Quadrado. “Quero estar com ela para o resto da minha vida.”

“Tenho 31 anos e sou paulistana”, Samantha se apresenta. “Namoro o Breno já tem quase sete anos.” Ela fez figuração em Colegas e o casal se conheceu na festa de lançamento. “Ele me deu o meu primeiro beijo”, ela revela. “Eu já participei de algumas coisas na vida”, comenta Samantha, que fez uma campanha como modelo para a marca Avon em 2016, saiu na revista Marie Claire e esteve na série Qual é a diferença?, do Fantástico.

Há um ano, Samantha veio em definitivo para o Rio. “Ainda estou me adaptando”, ela diz. “Quando comecei a namorar o Breno, era difícil, porque a gente vivia em ponte aérea”. Não é mais necessário. O afeto entre os dois é nítido e os horários são organizados de forma que possam estar juntos. “Gosto muito de sair com ela”, conta Breno. “Ela poderia ter vários namorados, mas fui eu o único que conseguiu tirá-la de São Paulo. É o maior presente. Eu não teria outra melhor do que ela”, ele se declara.

Breno Viola em cena do filme Colegas, no qual interpreta Marcio: o personagem tem o sonho de voar

Breno Viola em cena do filme Colegas, no qual interpreta Marcio: o personagem tem o sonho de voar // Crédito: Divulgação Gatacine

YOUTUBE
Assim como Breno, Samantha busca ter uma vida ativa. “Faço dança do ventre já tem seis anos.” E lançou um canal no YouTube. “Tenho esse canal desde que mudei de cidade. O nome é O quarto de Samantha e vou falar um pouquinho da minha vida aqui no Rio de Janeiro e São Paulo”, ela explica. Para o futuro, Samantha, que já foi auxiliar administrativo, tem planos de voltar ao meracado de trabalho. Ela sente falta. “Sou nova ainda.”

O mercado de trabalho ainda é um espaço pouco acessado por brasileiros com síndrome de Down. “A pessoa com deficiência intelectual em geral e a pessoa com síndrome de Down especificamente são ainda o público menos incluído no trabalho no Brasil”, afirma Flavio Gonzales, supervisor de Qualificação e Inclusão Profissional da Apae de São Paulo.

A inclusão profissional é outra área em que a instituição paulista tem feito diferença. Até 2012, a Apae de São Paulo conseguiu, no máximo, cem inclusões por ano. Em 2013, quando passou a adotar a Metodologia do Emprego Apoiado, o número saltou para 250, e seguiu aumentando nos anos seguintes. Em 2017, foram 495 pessoas incluídas. No ano passado, as dificuldades enfrentadas pelo mercado impactaram o resultado: foram 406 inclusões. “Temos pessoas com deficiência que hoje sustentam a família, até porque, por conta da legislação, muitas vezes acessam oportunidades de trabalho que outros familiares não conseguem”, esclarece Flavio.

Surgida nos Estados Unidos na década de 1970, a Metodologia do Emprego Apoiado propõe um novo paradigma, invertendo a lógica de qualificar para incluir. “Você integra a pessoa e vai junto para oferecer os apoios de que ela precisa, entendendo que é necessário desenvolver para ela um trabalho que inclua habilidades, potências que a pessoa tenha, interesses”, descreve o supervisor. “Quais são os apoios que estão disponíveis dentro do contexto do trabalho e que podemos colocar a serviço dessa inclusão? Com isso, a pessoa vai se qualificar como a maioria vem fazendo ao longo da vida, ou seja, trabalhando.”

SOLUÇÕES SIMPLES
Os apoios mencionados por Flavio são, muitas vezes, soluções bastante simples. Ele exemplifica com o caso de meninos encarregados da limpeza do salão em uma das lojas de uma grande rede de pizzarias. “Eles começaram a ser abordados pelos clientes, que queriam informações sobre o cardápio, só que alguns desses jovens não eram nem alfabetizados. Pegamos todos os displays e cardápios e fizemos uma qualificação específica para que eles soubessem entender o que é cada um dos produtos e explicá-los”, conta Flavio. “Toda pessoa consegue trabalhar, desde que você ofereça os apoios. Se aquela pessoa não está conseguindo trabalhar, o problema está no sistema de inclusão que está sendo usado”, garante.

No momento em que a pessoa consegue o emprego, a inclusão apenas começou, e por um ano a equipe da Apae de São Paulo a acompanhará de perto. “Quando você faz a inclusão mesmo, precisa muito mais de apoio da instituição. Precisa fazer intervenções, mediar”, afirma. “A Apae de São Paulo está plenamente convencida de que essa questão da inclusão social, e inclusão significa a pessoa estar no mundo e não institucionalizada, é um caminho sem volta”, acredita Flavio. Para ele, quando o direito da pessoa com deficiência é defendido, o que está sendo protegido não é o direito de um grupo, mas da sociedade inteira. “A incidência de deficiência é muito grande. Pessoas que não têm deficiência hoje terão amanhã. Pessoas que acham que não têm nada a ver com esse assunto amanhã terão filhos com deficiência”, reflete Flavio.

Quando se fala de inclusão social de pessoas com deficiência, no fundo, se trata de conseguir construir na sociedade mundos como aqueles que o pequeno Bernardo cria com a sua imaginação, onde não importa qual boneco você seja, todos são bem-recebidos e têm espaço garantido na festa do Bê.

* Reportagem: Renata Coré

** Fotos: Eduardo Cassús

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