ARTIGOS
Fazendo a saúde básica chegar até os ribeirinhos
Há oito anos, um projeto idealizado por uma rotariana paraense radicada em São Paulo reúne voluntários para cuidar de famílias que vivem na Amazônia
A não ser que se trate de caso de emergência, é possível que os moradores da mesorregião do Marajó (nomenclatura utilizada até o ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para fins de recenseamento), no Pará, passem períodos longuíssimos sem ver um médico. De acordo com números de 2016, a população naquela região gira em torno de 541.165 habitantes. No geral, são pessoas que se dedicam à agricultura camponesa, como plantação de mandioca ou coleta de açaí e castanha-do-pará, por exemplo, e cujo cotidiano está intrinsecamente ligado aos rios. Chegar até um hospital pode, muitas vezes, demandar uma viagem de barco de mais de um dia.
Iracema Queiroz Ribeiro sabe bem disso. Médica radicada em São Paulo, com 44 anos de profissão, ela viveu parte da infância exatamente naquela região. “Eu sou de lá. Fui criada em uma ilha da minha família até os seis, sete anos de idade. Depois a minha mãe me mandou para a capital para estudar e foi onde me formei médica, em Belém, pela Universidade Federal do Pará”, ela recorda. Em seguida, foi fazer residência em São Paulo e se especializou em ginecologia e obstetrícia. “Não consegui retornar mais”, conta.
Vivendo longe do Pará, Iracema acalentou um sonho: desenvolver um projeto solidário no lugar onde nasceu. Associada ao Rotary Club de São Paulo-Cambuci, ela era rotariana havia um ano quando, durante uma reunião, lançou a proposta. E assim, em julho de 2011, abraçado pelo clube e por cinco voluntários iniciais, o Projeto Saúde Solidária ganhou vida guiado pelo propósito de amenizar carências inalteradas há décadas. “Os problemas continuam iguais a quando eu era criança”, diz a médica, hoje com 70 anos.
ATENDIMENTO BÁSICO
No que se refere a saúde, a principal dificuldade na região é a deficiência de atendimento básico. “Há déficit de atendimentos médicos e odontológicos e de orientações básicas de higiene. Alimento não falta, porque a natureza é muito rica. Na Amazônia há muitas frutas, peixes e caça, então o problema não é fome nem tampouco água”, explica Iracema. Uma das consequências do pouco acesso à informação é a ausência de planejamento familiar. “Uma menina, com 28 anos, já tem cinco, seis filhos, porque é um por ano”, revela a médica. A ocorrência frequente de verminose é outra questão. “Quase todo mundo tem verminose. Você sabe que é falta de saneamento básico e de orientação de como cuidar da água. A água do rio está lá, muito boa, mas é preciso fervê-la, colocar hipoclorito de sódio para combater as bactérias”, ensina.
Por isso, para garantir que, ao menos uma vez por ano, os atendimentos básicos sejam oferecidos, o Saúde Solidária aporta na ilha de Iracema e, durante três dias, das 7h30 às 19h, cuida de famílias ribeirinhas que vivem no entorno do rio Pacajá. Na mais recente edição, em julho deste ano, 874 pessoas procuraram o projeto, que registrou 784 atendimentos médicos e 176 odontológicos, gerando 971 procedimentos diversos. Todos os atendimentos são realizados dentro de um barco próprio cedido pela Sociedade Bíblica do Brasil, uma das raras parcerias do projeto (que nas primeiras edições recebeu ajuda também do Rotary Club de Belém-Sul). No entanto, as despesas com combustível e alimentação da equipe de voluntários ficam por conta do Saúde Solidária. “Este ano foram 15 mil reais só de óleo diesel para o barco poder se movimentar até chegar à ilha”, revela Iracema.
As duas últimas edições do Saúde Solidária reuniram uma equipe de 45 voluntários, incluindo dentistas, terapeutas, clínicos gerais, ginecologistas e fonoaudiólogos. Parte deles sai de São Paulo, arcando com as próprias despesas de hospedagem e avião até Belém, onde pegam o barco que será utilizado nos atendimentos. Então começa uma viagem de 24 horas até a ilha que lhes servirá de base. “O coração do lugar é o rio, tudo é feito através dele”, descreve Iracema. Companheira de clube da médica, Maria Beatriz Moreira, psicóloga nascida em Belo Horizonte, é voluntária desde a primeira edição. “Se você quer se inspirar, faça esse projeto, vá uma vez”, ela incentiva, revelando na voz o entusiasmo com o Saúde Solidária.
NASCIMENTO NO BARCO
Beatriz não esquece o momento mais emocionante que presenciou em todos esses anos de projeto: o nascimento de uma menina dentro do barco. “A gente atendeu uma emergência e não dava tempo de chegar até a cidade mais próxima. Essa criança nasceu nas condições que a gente tinha. A doutora Carmen Mollica, que faz parto natural aqui em São Paulo, vai no projeto também e fez o parto com todo o conhecimento que ela tem. O que achei mais incrível é que a menina deu à luz às quatro da manhã e, às oito da manhã, já pegou a bebê e foi andando pra casa. Foi algo que a gente olhava e não acreditava”. Agora, todos os anos, eles fazem uma festa de aniversário para a criança.
A cidade mais próxima, a que Beatriz se refere, é Portel. Município com aproximadamente 60 mil habitantes, fica distante cerca de três horas de barco. De lancha, a viagem dura 40 minutos. Este ano, o prefeito emprestou um barco para o projeto, o que ampliou o número de consultórios. Parte dos voluntários vem dessa cidade e há ainda outros de Belém. Iracema tem família em Portel. A economista Maria das Graças Machado, sua prima, é diretora do hospital municipal e uma dedicada colaboradora do Saúde Solidária. “Toda a família da minha tia ajuda muito, porque faz a parte de lá. Angaria voluntários e várias coisas de que precisamos, como material dentário, que é difícil levar daqui por ser muito pesado. A vacina, por exemplo, a gente não leva de São Paulo, porque exige um cuidado especial. E a gente consegue que vá uma enfermeira especializada de Portel para vacinar as crianças. Minha prima ajuda bastante”, reconhece Iracema.
Em 2018, o projeto vacinou 230 crianças e aplicou 41 testes da orelhinha. Também ofereceu atividades lúdicas direcionadas, sessões de acupuntura e fisioterapia para os adultos (que costumam sofrer de lombalgia por carregar cestos cheios de mandioca e açaí), exames, atendimentos individuais acerca de programas sociais, palestras e distribuição de kits de higiene bucal e medicamentos. Tanto quanto as consultas médicas e odontológicas, essas são iniciativas fundamentais. “As gestantes fazem o parto com as parteiras e morrem bastante, porque, se houver uma complicação, é preciso que seja resolvida em ambiente hospitalar. Então nós vamos para lá para dar toda essa orientação de planejamento familiar e deixamos amostras grátis de anticoncepcionais e preservativos para elas usarem por um ano e não engravidarem logo em seguida, porque durante a amamentação elas já ficam grávidas de novo. Não adianta ensinar como não ficar grávida e não dar o material de que elas precisam, porque lá não tem farmácia, é só rio e mata”, esclarece a médica.
FALTAM PATROCINADORES
Sem nenhum patrocínio até hoje, a verba para manter o Saúde Solidária vem de ações beneficentes realizadas pelo Rotary Club de São Paulo-Cambuci. Bazares, rifas, participações em festas julinas, o clube faz o que for possível para levantar os recursos necessários. A arrecadação para 2019 inclusive já começou. “Minha casa já está cheia de amostras grátis de medicamentos. Tem uma companheira do Rotary que também já está com a casa cheia de roupas novas e seminovas, sapatos e bijuterias para o bazar”, enumera Iracema.
Para o próximo ano, a médica pretende reformular o projeto. As idas anuais já parecem insuficientes, razão pela qual ela agora quer aumentar a frequência de visitas e montar na ilha um posto de saúde com a presença de uma enfermeira. “Na ilha não tem ninguém, só mora o caseiro, mas se conseguirmos colocar um posto, teremos um acesso melhor para abordar esses assuntos mais do que só uma vez por ano”, explica Iracema. Será um grande benefício para famílias que, até mesmo por falta de condição econômica, costumam ficar muito restritas à localidade onde moram. Por isso, o momento agora é de buscar parcerias para chegar ainda mais longe com o Saúde Solidária.
Beatriz, que conheceu o Rotary quando o filho participou do Programa de Intercâmbio de Jovens e, por ter se sentido tão grata, quis se tornar rotariana para retribuir, resume bem o espírito do projeto: “Acho que a gente sempre pode fazer mais. Apesar de o Rotary funcionar com distritos, com áreas, acho que isso não existe, a gente tem que se unir e ajudar. Aquilo que você faz, floresce, e a gente tem que fazer florescer, porque irmana as pessoas”.
* Reportagem: Renata Coré.
** Fotos: Diego Imai, André Morais, Fernando Candella e Edilson Duarte.