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Horizonte ampliado pela dança

abr 27, 2018

No  Rio de Janeiro, uma escola de balé descortina possibilidades de vida a crianças de classes sociais desfavorecidas

“Adoro cheiro de teatro!”, ele inspira e diz, e é nítida a satisfação em sua voz. É uma quarta-feira, em meados de agosto de 2017, e Jônatas Soares Lopes está posicionado no centro do palco do Teatro 1, na unidade Tijuca do Sesc Rio, na zona norte carioca. Foi na infância que ele descobriu espaços como esse. Estão entre seus lugares favoritos.

Naquele fim de tarde chuvoso, o bailarino, então com 16 anos de idade, aguardava o início do ensaio fotográfico para a capa desta edição, animado e ansioso com a grande mudança que estava por vir. Nos próximos dias, Jônatas deixaria o Morro da Coroa, no bairro do Catumbi, também na zona norte da cidade, onde morava com a mãe, para completar sua formação profissional na academia do Dutch National Ballet, uma das mais renomadas companhias de dança da Europa, localizada em Amsterdã. “Não vejo a hora de saber como vai ser daqui pra frente”, ele confessa, e não precisa pensar muito para citar algo tipicamente brasileiro de que vai sentir falta: paçoca.

Jônatas nunca havia visitado a Holanda e agora viverá no país por pelo menos dois anos. Ele conquistou uma bolsa de estudos no início de 2017, durante o 45º Prix de Lausanne, uma competição internacional de dança realizada anualmente na Suíça. A proposta incluiu uma vaga de trainee na companhia de dança holandesa. “Além de fazer a escola, ele vai acompanhar os ensaios, aprender alguns papéis e vai estar sempre à disposição da companhia, ganhando experiência, convivendo com os coreógrafos. Então, pode até ser que ele dance com a companhia”, explica Guilherme Darzi, coordenador da escola de dança onde Jônatas passou metade da vida.

Mas vamos começar essa história pelo início.

Ele ainda não havia nascido quando a madrinha, Shirley Fernandes, vaticinou: “Vai ser bailarino”. Os chutes que Jônatas dava na barriga da mãe, Rosana Lopes, motivaram a previsão, que o tempo confirmou. “Quando era bem bebezinho, ele só gostava de brinquedos que emitissem som”, recorda Shirley. Um pouco maior, começou a tentar dançar como Michael Jackson. “Tudo que passava na televisão, referente a música, ele queria imitar”, ela conta. “O Jônatas gostava de tudo que gingava com o corpo”, confirma Rosana.

Logo mais gente percebeu essa aptidão. Na escola dominical da igreja, que ele frequentava acompanhando a madrinha, havia apresentações artísticas em datas festivas. Em uma delas, a participação de Jônatas despertou a atenção de uma professora de forma especial. Era um número de street dance. “Ela falou que ele tinha uma sensibilidade muito grande para a dança e perguntou se poderíamos levá-lo a uma escola de balé”, relembra Shirley. A madrinha concordou, mas disse que a palavra final caberia à mãe de Jônatas. “Aí ele fez o teste e passou”, conta Rosana.

Aos oito anos de idade, Jônatas foi aceito na escola de dança Petite Danse, na Tijuca, como aluno do projeto social Dançar a Vida. Nessa época, ele não conhecia o balé. “Eu gostava mais do street dance”, admite. “A diretora da escola o incentivou. Ela disse: ‘Por que você não faz balé, que é uma dança clássica, algo que vai mexer muito com o seu futuro e vai te dar outros lugares para ir e competir, para você voar como um passarinho, do jeito que você gosta?’”, lembra Rosana.

Jônatas aceitou o conselho. As primeiras aulas foram um choque. O balé era diferente de tudo que ele conhecia como dança. Aos poucos, insistindo e treinando, ele conseguiu acertar o passo. “Eu fiquei apaixonado. Depois que fui mais fundo no balé, decidi seguir minha vida por meio dele”, conta.

AMOR À DANÇA
Nelma Darzi, a diretora artística que enxergou no pequeno Jônatas um futuro bailarino clássico, foi quem fundou a escola, há 30 anos. O desejo dela sempre foi ter a vida ligada à dança. “Minhas irmãs mais velhas faziam balé. Eu também queria, mas meus pais não me colocavam na aula porque éramos muitos filhos”, relembra. Insistiu tanto que conseguiu, mas parou aos 12 anos por causa da situação financeira da família. Voltou aos 19, idade em que cursava faculdade de educação física e já podia pagar pelas aulas. “Aí já voltei pensando em ser professora.”

No final dos anos 1980, a mãe de Nelma ofereceu a ela a oportunidade de transformar a casa da família em sua própria escola de dança. Foi assim que surgiu, na Tijuca, a primeira unidade da Petite Danse (hoje há outras duas na zona oeste). Algum tempo depois, Nelma teve um problema de saúde: desenvolveu a síndrome do pânico. “Um senhor, conhecido dos meus pais, me falou: ‘Por que você não faz um trabalho social? Você fazia quando era mais jovem e agora não faz mais’”. Era a primeira vez que ela via o tal senhor e a pertinência da sugestão a impressionou. Decidiu aceitá-la.

Como a síndrome prejudicava seu deslocamento, Nelma teve a ideia de desenvolver o projeto social na escola de dança. Procurou a diretora da escola municipal ao lado da Petite Danse e apresentou uma proposta: “Ela autorizou. Falou que escolheria os melhores alunos, os mais comportados”. Mas não era isso que Nelma tinha em mente. “Falei que queria uma turma inteira e que poderiam ser os mais levados, porque eu queria trabalhar com os que tivessem mais dificuldade, com os que fossem os mais humildes”, ela recorda.

Desde que começou a dançar, Jônatas recebeu o apoio incondicional da mãe, Rosana Lopes

Desde que começou a dançar, Jônatas recebeu o apoio incondicional da mãe, Rosana Lopes

PRIMEIRA TURMA
Em 1999, 25 crianças da escola municipal formaram a primeira turma do Dançar a Vida. “No início, eles vinham com os cabelos desarrumados, a roupa suja, e no final do ano estavam com gel no cabelo, o uniforme limpinho”, orgulha-se Nelma. Entusiasmados com o projeto, outros professores da escola de dança começaram a oferecer ajuda. O resultado de mais gente trabalhando foi que Nelma pôde aumentar o número de vagas, e o trabalho social começou a crescer. Um amigo sugeriu que fosse transformado em ONG. “Eu nem sabia o que era ONG, fui me informar.” De forma voluntária, a contadora da escola cuidou dos trâmites necessários, como a criação de um estatuto. “Foi ganhando uma estrutura de projeto social mesmo, com toda a ajuda das pessoas de dentro da Petite Danse”, a diretora reconhece.

A diretora artística Nelma Darzi, fundadora da escola de dança Petite Danse, com a bailarina Fernanda Rodrigues, que interpretou a Gata no espetáculo intantil Os Saltimbancos, em apresentações na Cidade das Artes

A diretora artística Nelma Darzi, fundadora da escola de dança Petite Danse, com a bailarina Fernanda Rodrigues, que interpretou a Gata no espetáculo intantil Os Saltimbancos, em apresentações na Cidade das Artes

Pelos cálculos de Nelma, cerca de 500 alunos já passaram pelo Dançar a Vida e aproximadamente 175 trabalham hoje com dança. Atualmente, 183 futuros profissionais estão em formação nas três unidades da escola por meio do projeto. Para continuar identificando crianças com potencial, todos os anos há divulgação na rede municipal de ensino. Além disso, a pedido da associação de moradores, um núcleo foi montado no Morro da Formiga, na Tijuca, onde 45 crianças estão fazendo aulas. Todo esse trabalho é mantido com recursos próprios da escola de dança e o apoio de pais de alunos, colaboradores e empresas.

Uma grande reviravolta, em 2005, permitiu que o Dançar a Vida chegasse até esse ponto. Naquele ano, pela primeira vez um aluno do projeto foi convidado a ingressar em uma escola de dança estrangeira. De origem extremamente humilde, ele tinha 14 anos quando se mudou para São Francisco, na Califórnia, EUA. Aos 18, conseguiu um contrato profissional e permanece por lá, dançando como solista. Com o salário de bailarino, comprou uma casa para os pais.

DIRECIONAMENTO
Tanta transformação na vida de um ex-bolsista inspirou Nelma a ajustar o perfil do Dançar a Vida. “Decidi que não queria um projeto para as pessoas virem fazer balé e irem embora. Quero que o projeto tenha como objetivo o trabalho. Eles vêm pra cá e têm de estudar para trabalhar com isso, para que seja uma fonte de renda para a família e para eles”, define. A Petite Danse é autorizada pelo Conselho Estadual de Educação a oferecer o curso profissional de dança. Quando os alunos iniciam o nível técnico, Nelma reforça que eles estão ali para se tornar profissionais. Orientado dessa forma, o projeto social causa um impacto que vai além do benefício financeiro para o aluno. “Muda a vida da família toda, porque a família toda acaba melhorando. É uma transformação cultural, um ensinamento para os próprios familiares que não acreditavam”, considera a diretora.

Todos os bolsistas terão oportunidade de encontrar um caminho profissional dentro do vasto campo da dança, mesmo que não se tornem bailarinos clássicos, já que essa estrada é a mais estreita. Possuir dom e o tipo físico adequado é apenas o começo, diversos sacrifícios virão na sequência. Desde muito cedo, é preciso seguir uma alimentação regrada e manter uma rotina de exercícios rigorosa. “Com nove anos de idade, o bailarino já tem de estar pensando na profissão, na disciplina diária de aula e ensaio. Em competir para ganhar experiência de palco. Fico com pena, mas é assim. A vida é cruel”, conta o coordenador da Petite Danse, Guilherme Darzi, sobrinho de Nelma.

A capacidade de assumir um compromisso sério foi, para a madrinha de Jônatas, uma característica forte do afilhado desde que começou no balé. “Ele não faltava aos treinos. Ele tinha oito anos, às vezes estava com dor no corpo e chorava porque a mãe não iria levá-lo”, Shirley recorda. Os professores observam essa capacidade de dedicação antes de aumentar a carga de trabalho de uma criança. “Ele começou três vezes na semana e logo vimos que tinha potencial. Então, o colocamos para fazer aula de segunda a sexta e, depois, começou a ensaiar sábado também. Há criança que não tem maturidade para fazer aula todos os dias, porque fica cansada”, explica Guilherme. Em seu primeiro ano na escola, Jônatas já competiu em um festival e não parou mais. “Estar no palco, ver a plateia batendo palmas para você, ver o seu trabalho sendo reconhecido. Isso é muito bom para o bailarino”, comenta Jônatas.

Além do cansaço físico, os meninos que querem se tornar bailarinos clássicos encontram outro obstáculo: o preconceito contra homens que praticam determinadas modalidades de dança em nosso país. O bullying sofrido por alunos que começam a dançar balé já afastou bailarinos promissores do projeto social. Por sorte, há casos em que a escola consegue trazê-los de volta. Como o menino de 12 anos que ficou um ano e meio afastado e mais tarde se
tornou bailarino do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (a Petite Danse tem outros três ex-alunos lá).

Como coordenador da escola de dança, Guilherme observou um padrão: na Petite Danse, além de a grande maioria dos meninos serem alunos do projeto social, e não da escola particular, quase nenhum deles tem a presença do pai em casa. “Às vezes, o próprio pai não deixa, fica incomodado. No exterior você não vê ninguém preocupado com a orientação sexual ou em dar um rótulo porque alguém faz uma modalidade de dança. Lá o balé é uma atividade cultural normal, então as famílias colocam os meninos para fazer, porque é uma superatividade psicomotora de coordenação, de ritmo, de lateralidade. Você trabalha o cérebro o tempo todo”, explica Guilherme.

Felizmente, quando eles avançam na carreira, esses quadros familiares acabam melhorando. “Muitos, quando vêm, o pai não gosta, então não assiste ao menino dançar. Mas depois que ele está trabalhando, começa a valorizar. Há muitas histórias bonitas do pai que batia e depois mudou”, revela Nelma. Uma curiosidade: até o século 18, o balé clássico era dançado exclusivamente por homens.

FALTA DE RECURSOS
Para se tornarem bailarinos clássicos em padrão de excelência, os alunos do projeto social ainda precisam superar pelo menos mais uma dificuldade: a falta de recursos financeiros. Além da formação profissional, a Petite Danse oferece a eles musculação e colabora com a alimentação. Adolescentes vindos de outros Estados têm também a possibilidade, enquanto não conseguem trabalho, de morar no alojamento que a escola de dança montou em um apartamento alugado. Atualmente, nove bailarinos estão instalados lá. Mas há os outros gastos, como as viagens para competir em festivais, inclusive internacionais.

Há boas companhias por aqui, mas o grande sonho de praticamente todo bailarino brasileiro é trabalhar em um país onde a arte encontre mais reconhecimento. O Theatro Municipal do Rio, que deveria ocupar o lugar de grande referência nacional no que diz respeito a companhia de balé clássico, vive um momento delicado. Atingido pela crise econômica estadual, teve a temporada de O lago dos cisnes cancelada, deixando de apresentar uma grande obra no ano passado. A temporada de O quebra-nozes, em dezembro de 2016, foi o último balé clássico em cartaz e, desde o final de 2015, os funcionários sofrem com a irregularidade no pagamento dos salários. Para evitar situações como essa, quando estão prontos, o que precisa acontecer por volta dos 16 ou 17 anos, os alunos do Dançar a Vida são incentivados a buscar uma carreira internacional.

Foi exatamente esse passo que Jônatas seguiu. No 45º Prix de Lausanne, ele não se classificou para a final. Ainda assim, despertou o interesse de quatro escolas estrangeiras. Ao escolher a academia do Dutch National Ballet, realizou também um sonho de Nelma, que há algum tempo queria ter um ex-aluno lá. A escola também já enviou bailarinos para a Alemanha, Inglaterra, França, Portugal, Áustria e Nova Zelândia. Vivendo na capital holandesa desde setembro, ele está adaptado. “Estou adorando!”, comemora. E até descobriu uma loja brasileira que vende paçoca.

AJUDA DO ROTARY
Antes de garantir essa conquista, no entanto, ainda houve uma dificuldade. A bolsa de estudo não incluía a passagem de avião, e Jônatas não tinha recursos para comprá-la. Essa é uma das situações em que entram os apoiadores do projeto e, dessa vez, a ajuda partiu do Rotary Club do Rio de Janeiro. O portador do pedido foi o rotariano Ricardo Teixeira, que frequenta a academia de ginástica onde a mãe do bailarino trabalhava e já conhecia a história dele.
“Uma vez, na academia, uma moça me mostrou um vídeo de um rapaz de 15 anos dançando, e era tão bacana. Eu vi que o cara tinha talento”, conta Ricardo.

Por isso, quando Nelma telefonou para falar sobre a passagem aérea, de pronto o rotariano respondeu que consultaria alguns amigos. “A consulta foi a Christa Bohnhof-Grühn, a pessoa que viabiliza muitos dos nossos projetos no Rotary Club do Rio de Janeiro”, revela. Ricardo enviou para ela um vídeo em que Jônatas aparece dançando na Suíça e a afirmativa veio em minutos. “O Rotary Club do Rio de Janeiro, com doações que consegui arrecadar, pagou a passagem do bailarino”, diz Christa, que é diretora da Comissão da Fundação Rotária no clube.

Maria Regina Camara, Ricardo Teixeira e Christa Bohnhof-Grühn, do Rotary Club do Rio de Janeiro. O clube deu ao bailarino Jônatas Soares a passagem aérea para Amsterdã, onde estudará por dois anos

Maria Regina Camara, Ricardo Teixeira e Christa Bohnhof-Grühn, do Rotary Club do Rio de Janeiro. O clube deu ao bailarino Jônatas Soares a passagem aérea para Amsterdã, onde estudará por dois anos

Acompanhado da diretora da escola de dança, Jônatas recebeu a passagem de avião em julho, durante uma reunião do clube, que tem como associada uma ex-professora de Nelma. “Conheço a família dela há muitos anos. Acompanho seu desenvolvimento desde pequena. O sucesso e as vitórias que ela tem alcançado não me surpreendem, porque desde muito cedo evidenciava seriedade, talento e disciplina”, comenta a rotariana Maria Regina Camara.

A exemplo dela, a mãe de Jônatas ficou feliz, mas não considera que a vitória do filho tenha sido uma surpresa. “Eu já imaginava que ele conseguiria chegar a esse topo, porque é muito esforçado”, elogia Rosana. “Ele nasceu para dançar. Tenho certeza que o meu afilhado terá muitas vitórias e será um grande bailarino”, prevê outra vez a madrinha.

Aproximadamente 275 bailarinos, incluindo alunos da escola particular e do projeto social, subiram ao palco da Cidade das Artes, na zona oeste, para dançar Os Saltimbancos, em dezembro de 2017

Aproximadamente 275 bailarinos, incluindo alunos da escola particular e do projeto social, subiram ao palco da Cidade das Artes, na zona oeste, para dançar Os Saltimbancos, em dezembro de 2017

Em dezembro, a Petite Danse celebrou o encerramento das atividades de 2017 com um espetáculo infantil e outro adulto. As apresentações de Os saltimbancos e Tropicália, na Cidade das Artes, zona oeste, e no teatro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, zona norte, reuniram no palco tanto alunos do projeto social como da escola particular. A partir de abril, os espetáculos que encerrarão 2018 começarão a ser criados. No início deste mês, Jônatas retornará ao Prix de Lausanne, não mais para competir, mas como um dos dois alunos escolhidos para representar o Dutch National Ballet na apresentação de gala, quando os vencedores do festival recebem os prêmios. Mais ou menos na mesma época, Nelma estará selecionando novos alunos para seu projeto social, porque é preciso seguir fomentando a arte e ajudando as crianças a expandirem seu mundo por meio da dança.

Reportagem: Renata Coré

Fotos: Eduardo Cassús

Arte: Armando Santos

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