Clubes em Ação

Voltar

ACERVO

Voltar

NOTÍCIAS

Conheça a história da primeira rotariana da América Latina

set 12, 2017

Emma Hildinger (à direita) como governadora distrital assistente de Léia Costa, primeira mulher a liderar o distrito 4600

Emma Hildinger (à direita) como governadora distrital assistente de Léia Costa, primeira mulher a liderar o distrito 4600

Meu pai me dizia: ‘Se você quer e tem coragem, você vai vencer’. Eu puxei muito ao meu pai, à coragem dele. Quando eu quero uma coisa, eu luto e consigo”, explica a entrevistada com seu forte sotaque alemão. Aos 93 anos de idade e conhecida pelos amigos como uma pessoa incansável, Emma Hildinger é atualmente associada ao Rotary Club de São José dos Campos, SP (distrito 4600), cidade onde reside. Ela já tinha uma história de vida rica quando, contrariando os estatutos do Rotary International, que vetavam mulheres na organização, ingressou no Rotary Club de Caçapava, SP, em 17 de maio de 1988. Com a ousadia, Emma tornou-se a primeira rotariana da América Latina. Hoje ela coleciona um currículo rotário extenso, tendo sido presidente de clube diversas vezes e governadora distrital assistente em 2003-04.

Emma nasceu em 1923 na cidade de Waldbronn, no sul da Alemanha, e chegou sozinha ao Brasil em 1950 para começar sua vida profissional como secretária executiva na cidade de São Paulo. Ela jamais se esqueceu dos horrores e do sofrimento da Segunda Guerra Mundial, mas a experiência parece ter aguçado nela a vontade de ajudar o próximo. Viúva, mãe do engenheiro e administrador de empresas Thomas, e avó das trigêmeas Cinthya, Evelyn e Karyn, universitárias de 20 anos, Emma tem muito a nos contar, e o faz com toda a simpatia e tranquilidade, como se fosse uma amiga de longa data. Para essa conversa nas próximas páginas também convidamos o leitor.

REVISTA ROTAR Y BRASIL: O que a levou a ser rotariana?

EMMA HILDINGER: Eu sempre tive a vontade de ajudar. Eu atravessei a guerra e sei que é necessário ajudar o próximo. Por acaso, ainda na Alemanha, encontrei um rotariano que falou com muito entusiasmo sobre o Rotary. Então, quando eu trabalhava em Caçapava, os rotarianos de lá me falaram: “Você não quer conhecer o nosso clube?”. Perguntei: “Mas vocês não falaram que mulher não pode entrar no Rotary? Não existe ainda isso?”. “Mas você pode participar um pouco”, responderam. “Tá bem”, disse [o ano era 1987]. Depois começaram a aproveitar a minha assistência nos eventos.

Um dia me falaram: “Decidimos que vamos lutar para você ser nossa companheira de clube”. E começou a briga com o Rotary International, porque ele foi informado que o clube aceitou uma mulher e não estava ainda autorizado isso. Por fim, chegou o governador do distrito: “Está aqui a carta, eu tenho que fechar o clube”. O nosso advogado falou: “Pela lei brasileira não existe diferença entre homem e mulher. Vocês não podem fechar”. A briga levou o ano inteiro [de 1988], até que na Convenção do Rotary de 1989 ficou liberada a entrada de mulheres.

A senhora sempre foi muito participativa, né?
Estou acostumada a sempre fazer alguma coisa e isso animou os rotarianos de Caçapava. Quando eu era convidada para as reuniões, sempre tinha alguma coisa que eu fazia; feijoada, churrasco, eu ajudava a fazer.

E poucos anos depois a senhora se tornou presidente do clube…
Já na festiva em que assumi a presidência do Rotary Club de Caçapava [em 1992-93], falei da necessidade de uma ambulância para o hospital público da cidade. Sabe o que falaram? “Você está maluca? Como você acha que o nosso clube vai conseguir dinheiro para comprar uma ambulância?” Mas fizemos feijoada, churrasco, parque de diversões, cachorro-quente na praça, e conseguimos comprar. Quando a gente quer uma coisa tem que lutar por ela.

Hoje sou associada honorária do Caçapava. Depois que operei o joelho, o médico me pediu para não pegar mais o carro para ir às reuniões em Caçapava. O meu clube atual, aqui de São José dos Campos, me recebeu com muito carinho. Eles fazem a cada ano uma campanha do agasalho. Só dos prédios aqui perto de onde moro, levei cinco sacos de 100 litros com agasalhos. Todo mundo ajudou. No ano passado, eu fui a presidente mais idosa do Brasil. Sempre digo: a cabeça estando boa, os pés se viram.

Como foi ser a primeira rotariana da América Latina? Naquele momento, a senhora tinha ideia de que era uma pioneira?
No Brasil, mais ou menos eu tinha. Da América Latina, naquela época não tinha ideia.

Logo depois que se tornou rotariana, a senhora viu outras mulheres ingressarem nos clubes da região?
Demorou. Os clubes ficaram com receio, porque tem homens machistas, que não gostam da ideia. Até hoje tem clubes no meu distrito que não convidam mulher.

A senhora chegou a sofrer algum tipo de resistência no meio rotário?
Nenhuma. Fui sempre muito respeitada, muito querida aonde vou. Logo fui presidente do clube de Caçapava e aqui em São José dos Campos fui presidente três vezes.

Recentemente, a senhora recebeu uma homenagem.
Foi uma das grandes alegrias da minha vida. Na posse do nosso governador [Ivanir Chappaz], eu tive que ir à tribuna e não sabia o porquê. No fim de tudo, de repente, ele me deu uma placa. Agora eu sou Governadora Distrital Honoris Causa.

Sei que a senhora também é muito atuante na Semana Rotária [iniciativa promovida pelos clubes anualmente em fevereiro, mês de fundação do Rotary].
Em todos os projetos eu ajudo. Na Semana Rotária vamos a um bairro e são feitos exames de sangue, de visão, medição de pressão, chamamos enfermeiras. Muitas crianças precisam de óculos e não têm dinheiro para comprar. Então fazemos alguma festa, algum bazar, para entregar os óculos.

Acha que o ingresso da mulher mudou o Rotary?
A impressão que eu tenho é que os clubes que convidam mulheres tomam mais iniciativa. A mulher não desiste, ela vai em frente. Geralmente, a primeira coisa que os homens falam é: “Ah, isso aqui não é possível”. A mulher chega e diz: “Vamos tentar”. Eu sou assim, quando falam que não é possível, digo: “Vamos tentar mais uma vez, quem sabe…”.

Por que a senhora escolheu o Brasil para viver?
Inicialmente, eu queria ir para o Canadá, mas não me deixaram entrar porque eu era solteira. Depois da guerra, o Canadá só deixava entrar famílias. Como eu tinha um primo, que infelizmente também morreu na guerra, jornalista, e ele tinha amizade com o pessoal de um jornal alemão do Rio de Janeiro, mandei uma carta para eles. Perguntei se não podiam me ajudar. Então eles fizeram contato com o consulado e consegui o visto para o Brasil. Digo que sou mais brasileira do que muitos brasileiros. Aonde vou defendo o nosso país.

Quando a senhora chegou, sabia alguma coisa de português?
Não, nada, nada. Eu andava com jornal e dicionário. Eu escutava uma palavra e pegava logo o dicionário para ver. Em três meses, conseguia me entender muito bem. Aprendi português sozinha.

Estranhou muito as diferenças culturais?
Estranhei um pouco, mas antes li muito sobre o Brasil, os costumes e tudo. Eu estava mais ou menos orientada, porque para chegar em um país totalmente diferente a gente tem que se preparar um pouco.

E o machismo aqui, não a impressionou?
Isso eu estranhei. Na Alemanha, por exemplo, eu estava acostumada a andar de calça comprida [no Brasil dos anos 1950, o uso de saias era quase uma exigência]. A mulher não tinha o mesmo valor que os homens.

A senhora poderia falar um pouco sobre a experiência da Segunda Guerra Mundial?
Foi a pior época da minha vida. Veja bem: eu tinha 15 anos quando começou a guerra. Eu queria viver, tinha planos para o futuro. E aí acabou tudo… E quando acabou a guerra, eu tinha 21 anos. Eu morava a 20 quilômetros da fronteira com a França, você pode imaginar o que nós sofremos. Todas as noites chegavam os aviões e jogavam bombas. Durante os dias, a gente escutava os tiros. A vida foi muito difícil. Houve represálias quando entraram na Alemanha. Não podíamos sair do portão depois de certa hora. Não tínhamos mais água, e íamos com um balde d’água para buscar água numa mina na floresta.

A senhora e sua família foram poupadas de violência?
Sim. Meu pai, Joseph, era marceneiro e carpinteiro. Ele fazia caixões também. Então um dia ele falou o seguinte: “Emma, você me ajuda a levar este caixão? Vamos deixar bem na entrada do portão”. Aí nunca mais veio ninguém.

Como a senhora vê o mundo hoje?
Não aprenderam com aqueles seis anos de guerra. Morreram milhões naquela época e o mundo não aprendeu o que significa uma guerra.

Vivemos ainda um mundo de intolerância…
Veja o que está acontecendo na Síria. O mundo podia ser tão bom… Há lugar para todo mundo, é só querermos.

E o futuro do Rotary?
O Rotary ainda tem que fazer muita coisa. Tem que mudar também alguma coisa na administração. Mas terá sempre futuro, porque o Rotary é uma organização que ajuda muito as pessoas. Não é à toa que temos parceiros como a Fundação Bill e Melinda Gates.

NOTÍCIAS

Share This